VAMOS FALAR DE POLÍTICA? A CRISE, O RACISMO E A PANDEMIA: IMBRICAMENTOS ESTRUTURAIS DIANTE DO GENOCÍDIO PROGRAMADO

Postado: 26/04/2021

Hodiernamente tentamos, a todo custo, juntar a miríade de peças quebradas de um jogo da vida que é constantemente destruído pela crise estrutural do capitalismo, pelas disputas dentro da mesma e a natureza das estratégias de seu enfrentamento. Esse processo destrutivo é revelado, por sua vez, no solapamento da estabilidade dos processos de acumulação de capital, posto que tais modelos não estão a salvo do desenrolar histórico e contraditório da sociedade e do modo de produção capitalista, cuja “queda tendencial da taxa de lucro” representa um dos grandes agravantes da questão (MASCARO, 2013.). Contudo, isto não compete apenas à questão da acumulação de capital, pois o próprio modo de gerir o processo é duramente afetado por esse constante descolamento estrutural.

       Neste processo de desmonte humanitário, por mais nítida que seja a condicionalidade económica, é patente que não podemos limitar a questão a ela, mesmo sendo basilar para tanto. Os referidos ciclos econômicos – que preservam a reprodução do sistema dentro do modelo específico de acumulação, como por exemplo, o Fordismo ou o Pós-Fordismo – não comportam apenas questões infraestruturais. Logo, presenciamos como reflexo, portanto, uma crise política, cultural, jurídica, socioambiental, em suma, uma crise de civilidade sob um sistema que, mais uma vez, demonstra a relação intrínseca entre sua natureza – a valorização do valor, a acumulação de capital e a dominância dos que vivem dos lucros auferidos em tal relação social – e o fracasso no que tange à garantia da vida plena e digna a todos, pois, ao contrário, precisa manter e potencializar a alcunha de “máquina de moer gente” para que possa respirar. Neste sentido, quando pensamos em nosso país, o processo de rearticulação social, econômica e política em voga desde meados da década passada, que culminou na vitória da “nova direita” no pleito presidencial de 2018, temos o nítido exemplo do que buscamos desenvolver acima. O golpe de 2016 e a destruição material e simbólica da experiência petista são constituintes do último fio de coligação entre o processo de crise, em constante recrudescimento nas mais variadas instâncias sociais, e aquele modelo heterodoxo de regulação proporcionado pelo Estado brasileiro no governo Dilma.

   Assim, em terra descampada e retrabalhada por outra relação de influência a partir da própria mudança significativa na correlação de forças sociais e políticas – finalização da conciliação de classes – já sob o governo Temer, um novo modelo de regulação iria sendo implantado, de modo a tentar reconciliar diretamente a gestão da crise aos interesses do grande capital, algo que ocorre ainda hoje e de modo mais desenvolvido sob o governo Bolsonaro. Aqui, com a potencialização do modelo ortodoxo de acumulação e regulação – completamente neoliberal –, do neoconservadorismo e da militância política reacionária dentro da nova gestão estatal, temos que a “nova razão de mundo neoliberal” (DARDOT e LAVAL, 2016. p.3) e a forma de governo correspondente estariam alinhando esse novo período histórico. Não obstante, a pandemia de Covid-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março do ano passado, torna-se um agravante para este cenário, dado que, ao mesmo passo que aumenta as convulsões sociais, as múltiplas desigualdades e, por conseguinte, põe milhões de vidas sob os caprichos do poder da morte, como visto no genocídio programado como estratégia de “enfrentamento” ao estado de calamidade pública, também catapulta o processo de atuação governamental frente a crise não no sentido de mitigar as mazelas sociais subsequentes, mas de salvaguardar o sistema e seus principais atuantes, ou seja, os grandes capitalistas.

  Temos, portanto, que a crise socioeconômica preexistente é potencializada pela pandemia, ganhando novas formas e, nesse sentido, agravando o retrocesso social ao mesmo tempo que permite espaços de desafogos para o setor financeiro ou o aumento da concentração de renda e de capital, por exemplo, sob os auspícios do pacto dos bilionários. Assim, enquanto uma ínfima parcela da sociedade brasileira – leiam-se frações burguesas – é agraciada, o flagelo da pandemia é diretamente ligado aos trabalhadores, às minorias sociais e aos sujeitos historicamente desassistidos. Não obstante, completados um ano de negacionismo e de empecilhos ao combate contra o Covid-19  no Brasil, fica nítido que a forma de “controle” da pandemia, que tanto negligencia as massas brasileiras, é pautada pela tática do “capitalismo de desastre” (KLEIN, 2008.p.12), ou seja, pela imposição da destruição material e simbólica de um país e de sua sociedade para que desta terra arrasada sejam negociados, controlados e destruídos os direitos sociais, civis e políticos, bem como o próprio pacto constitucional, ou seja, frutos conquistados pela dura luta dos trabalhadores. Pretende-se voltar para uma economia de tipo colonial, amplamente desindustrializada, onde a desigualdade social seria exponencialmente aumentada, algo que já podemos sentir hoje.

   A pandemia é, portanto, um desastre para os trabalhadores, para as minorias sociais, em suma, para os condenados das terras brasileiras, ao mesmo tempo que é uma oportunidade para aquele ente que estruturalmente é um terceiro entre a relação capital-trabalho, mas que, sem pestanejar, em sua ortodoxia, é amplamente influenciado pelos interesses do grande capital. Tais Estados, mesmo não sendo “totalmente eficientes à exploração, às dominações e à reprodução social” (MASCARO, 2020.p.10) por serem entes relativamente autônomos, atuam de modo a garantir a potencialização dos lucros desses setores em detrimento daqueles que, diante a atonia da crise estrutural do capitalismo, estão relegados ao caos do real laissez-faire. Estes últimos são, fundamentalmente, negros, pobres e periféricos. Nesse sentido, o genocídio promovido diariamente no Brasil pandêmico é, mais uma vez, uma tática favorável aos que dominam para manter intactos os seus lugares e, melhor ainda, potencializá-los diante da novidade promovida pelo capitalismo do desastre, cujo modus operandi, contudo, não é tão diferente do genocídio dos povos originários e, ainda hoje, do extermínio em massa de pessoas negras e indígenas em solo brasileiro. Ambos são projetos inimigos da população brasileira. Nesse sentido, é patente que o racismo e as desigualdades sob o marcador social da diferença racial são fundamentais para compreendermos o período e suas distintas nuances, pois o genocídio atinge, em maioria, pessoas negras, pobres e faveladas. Pretendemos discutir, nas linhas seguintes, o peso da questão racial dentro do cenário pandêmico a partir de apontamentos introdutórios da temática.

O racismo como fator estrutural da sociedade: um ponto de partida

     Tratar da questão racial no Brasil é sempre uma árdua e difícil tarefa que compete não somente à teoria, mas, fundamentalmente, a sua correlação com a prática antirracista. Destarte, em se tratando do debate teórico, surgem questionamentos acerca da natureza ou das formas de compreensão do fenômeno diante de suas múltiplas facetas no que concerne às manifestações sociais, econômicas, políticas e jurídicas moldadas, dentre outras coisas, pelas relações estruturais de opressão racial. Tratando do tema nesses termos, torna-se evidente que o racismo deve ser encarado como um fenômeno para além da esfera individual e institucional, pois ele estrutura e organiza as relações sociais e de produção. O racismo é, portanto, um componente fulcral para a organização societal, cuja reprodução institucional, prático-material e simbólica são variantes do mesmo enquanto criação da própria estrutura social dentro de sua historicidade contraditória e conflituosa.

    Se reiteramos o papel do racismo enquanto um dos sustentáculos fundamentais da sociabilidade e das relações de produção da estrutura social em que vivemos, é importante destacar que esta possui um nome: a estrutura é o capitalismo que, ao mesmo tempo, se alimenta (do) e retroalimenta (o) racismo. Nesse sentido, o racismo pode ser tido como, dentre outras coisas, um modelo superestrutural de organização do poder social e econômico, onde tanto as ações institucionais – do Estado – quanto históricas, culturais e de produção não apenas criam, mas conservam tais mecanismos de discriminação estrutural. Isso quer dizer que, numa sociedade criada a partir do sangue e do suor de pessoas negras escravizadas, do genocídio da população originária e da manutenção do extermínio negro – em suas múltiplas significações – dentro da “nova segregação” (ALEXANDER, 2017.), o racismo é uma das principais colunas da formação histórica de uma sociedade estruturalmente racializada. Não obstante, especificamente no Brasil, a apartação material e simbólica da sociedade, mesmo sendo de forma velada e, até certo ponto, inconcebível com base na narrativa geral do Brasil enquanto uma democracia racial, é duramente representada desde a tenra idade do país e, fundamentalmente, na transição para o capitalismo dependente. Com base nessas questões mais teóricas, podemos iniciar as descrições dos casos candentes em voga neste contexto de distopia em que vivemos.

    O racismo como um catalisador do genocídio: a crise encontra as suas inevitáveis convulsões sociais e estruturais

    Tendo em mente as questões previamente indicadas, temos que a questão racial no Brasil é, de certa forma, exponenciada e escancarada dentro da crise prolongada do sistema capitalista e de seu agravamento na pandemia de Covid-19, pois o estrangulamento do sistema público de saúde, as medidas de austeridade fiscal e reformas como a administrativa são ataques diretos às massas brasileiras, fundamentalmente, as pessoas negras, pobres e periféricas. Cabe argumentar que, no contexto de crise do capitalismo em sua face neoliberal, o racismo – o sexismo e a lgbtfobia – passou a ser reforçado nos discursos reacionários e identitários da extrema-direita, cujo culto à concepção do “cidadão de bem” dissemina o ódio às minorias sociais e reforça o punitivismo seletivo e o encarceramento em massa. Logo, o racismo pode ser utilizado como um motor para a aglutinação e reorganização social no contexto de crise, cujos culpados são arbitrariamente apontados como desviantes de uma moralidade cada vez mais fundamentalista religiosa – principalmente neopentecostal –, racista, lgbtfóbica, sexista, em suma, o puro suco da nata neofascista em solo brasileiro. A crise não é culpa do sistema predatório de dominação de classes e da natureza promovida pela burguesia no capitalismo, ou seja, do que foi apontado como a regra de um sistema que necessariamente porta crises, mas sim daqueles que são duramente afetados pela mesma. Essa é a chave de explicação em voga no modo neoliberal de gestão de crises. Com base nessas questões mais teóricas, podemos iniciar as descrições dos casos candentes em voga neste contexto de distopia em que vivemos. 

  1. Comorbidades sociais do racismo em uma sociedade pandêmica:

    Tratar do racismo à brasileira como um mecanismo de poder social, econômico e, por conseguinte, político é traçar a apartação socioeconômica e simbólica dos grupos racialmente definidos, pois “assim como o privilégio faz de alguém branco, são as desvantagens sociais e as circunstâncias histórico-culturais, e não somente a cor da pele ou o formato do rosto, que fazem de alguém negro” (ALMEIDA, 2019.p.77). Essa demarcação, mesmo que velada e negada por um discurso comum a todas as esferas da sociedade, pode ser tida como uma variável daquilo que Frantz Fanon definiu, ao falar sobre a estrutura social colonial, como “mundo compartimentado” ou “mundo dividido em dois” (FANON, 1965.p.28). Ou seja, salvo as diferenças do desenvolvimento histórico e concreto das duas estruturas sociais, é evidente que os “dois brasis” vistos na crise de pandemia de Covid-19 representam comum acordo com tal lógica: uma face que domina e lucra exponencialmente sob a pauperização e o sofrimento da outra. A maioria da população, sendo negra, pobre e periférica é, nesse sentido, vilipendiada de forma direta dentro do afunilamento da crise de acumulação de capital.

   Em concordância com Fanon, Thula Pires nos brinda com uma constatação enfática do cenário do mundo compartimentado. Para esta especialista em direito constitucional, quando pensamos em cidadania, democracia, equidade, em suma, em preconizações políticas e morais democráticas – da democracia burguesa, digamos melhor –, temos que o próprio traço ontológico entre a zona do ser e a “zona do não-ser” (FANON, 2008.p.26) trabalhado pelo psiquiatra e revolucionário martinicano seria algo fulcral para a compreensão da negação da condição de humanidade aos condenados das terras brasileiras. Para a autora, a

inefetividade das garantias constitucionais fundamentais na zona do não ser não é um problema a ser considerado como violação de direitos  ou como falta de vontade política para fazer valer a lei. O não acesso a direitos pela zona do não ser é a mais bem-acabada forma de atuação do direito, nos termos em que ele foi pensado para atuar, portanto, como atributo exclusivo da zona do ser. As categorias jurídicas não foram pensadas a partir da realidade vivida por quem habita a zona do não ser e não se comunicam com o sentido e amplitude de nossas reivindicações por igualdade, saúde, moradia, propriedade, liberdade, vida, segurança. (PIRES, 2020.p.265)

     Afirmar essa nítida relação estrutural paramentada pela opressão racial não é, contudo, esquecer da correlação entre raça, classe e gênero. Pelo contrário, é perceptível como se perpetua a relação entre as “muletas” e o sistema que delas utiliza para preservar suas formas de acumulação de capital. Nesse sentido, as comorbidades sociais do racismo indicam meios fundamentais para as lesões previas ao vírus; a maior propensão e vulnerabilidade material e psicológica aos efeitos nefastos da pandemia: diferença salarial entre mulheres brancas e homens negros; concentração de renda; a vulnerabilidade ao vírus no que tange aos empregos presenciais e desvalorizados; os burnouts que acarretam na exaustão física e emocional. Tudo isso demonstra que o racismo estrutural potencializa o cenário distópico para o que apresentamos como a zona do não-ser e seus componentes – negros, pobres e periféricos. Podemos, portanto, prosseguir aos apontamentos. 

    2. Da questão da vacinação

    Segundo o levantamento promovido pela Agência Pública, até o dia 14 de março de 2020, apenas 8,5 milhões de pessoas haviam sido vacinadas – primeira dose – no país. Entre essa porcentagem de vacinados – em maioria dos sujeitos que comportam o grupo de risco e as linhas de frente no enfrentamento da pandemia – tornou-se visível que pessoas brancas haviam sido mais vacinadas do que as não-brancas, fundamentalmente as negras. Este caso representa, de forma uníssona aos argumentos supracitados, uma síntese da organização racista da sociedade brasileira, posto que os fatores que explicam a querela podem ser compreendidos como comorbidades sociais.  Mesmo representando 56,2% da população nacional, o grupo de pessoas negras – pretos e pardos, segundo o IBGE –, teve, segundo o levantamento, um percentual de 1,48% de vacinados, em contrapartida aos 3,66% do grupo de pessoas brancas. Isso se deu, segundo o levantamento, pela baixa expectativa de vida da população negra brasileira – 30% a menos na faixa etária dos 60 anos ou mais quando em relação aos brancos segundo o Censo Demográfico de 2010 – e pela ineficiência da definição de quais condicionalidades concernentes ao chamado grupo de risco/prioritário. Nesse sentido, as posições menos valorizadas no mercado de trabalho da primeira linha de enfrentamento ao covid – auxiliar de serviços gerais em unidades de saúde, bem como seguranças e terceirizados –, em maioria ocupadas por pessoas negras e periféricas, não foram diretamente englobadas ao plano primeiro de vacinação.

Diante disso, mesmo sendo cristalina a distinção social e racial no que tange aos casos de morte e de contagio por Covid-19 – 10% a mais de casos e 92 mortes por 100 mil habitantes entre negros quando em relação a 88 mortes por 100 mil habitantes entre os brancos no Brasil –, efetividade alguma é tida no sentido de contornar o problema. Logo, segundo o levantamento, pessoas negras tendem a acessar menos e em menor tempo os leitos de UTI destinados ao tratamento do Covid-19, bem como a possuírem o trágico primeiro lugar no pico de mortes por raça/cor – (15.246 mil) em maio de 2020 contra tristes 11.900 mil mortes entre as pessoas brancas em julho do mesmo ano – dados obtidos até o dia 14 de março de 2021 pelo levantamento. Um outro agravante que denuncia a negligência referida seria justamente a subnotificação do marcador raça/cor nos dados coletados até maio do ano passado. Assim, os dados obtidos a partir dos registros de casos de covid-19 que desconsideravam o marcador de raça/cor, entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês em 2021, demonstram que a queda abrupta entre o início do período – de 66% em fevereiro para 17% em outubro do ano passado – e o final da amostra de tempo, ou seja, 22% em fevereiro de 2021, conservam a subnotificação da distinção racial dentre os casos.  A distribuição, a alocação e o próprio acesso à vacinação têm, portanto, nítidas condicionalidades que perpassam a questão racial à brasileira.

3. Mundo do trabalho e auxílio emergencial no cenário pandêmico: qual o peso do racismo?

   Com base no estudo do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap –  intitulado “Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia", com dados retirados das plataformas Pnad e Pnad covid-19, temos que a taxa de desocupação ao longo do ano de 2020 teve um acréscimo de 5,18%  - de 11,45% para 16,63% - entre as pessoas negras, sendo consideravelmente maior em relação ao percentual dentre as pessoas brancas - de 9,17% para 11,58%. Muito embora tal estatística demonstre o tema debatido, o exemplo quanto ao "teletrabalho" nas "profissões liberais" é pertinente para a reflexão aqui proposta.  Assim sendo, o home office foi mais acessível a brancos ao longo do ano passado - 17,9% em maio e decresce para 12,4% em novembro - se comparado com acesso tido por negros - 9,0% e 6,0%, nos mesmos meses, respectivamente -, mas isso não indica  que pessoas brancas retornaram ao trabalho presencial mais cedo que as pessoas negras, posto que, ainda segundo o trabalho, a maioria dos profissionais negros com diploma de curso superior são professores (34,8%) e, tendo menor porcentagem nas demais profissões liberais se comparados a pessoas brancas, não retornaram aos seus postos nas escolas. A dissonância está na distribuição dos cargos entre tais grupos.

  Por último, mas tão importante quanto, o estudo demonstra a dependência de cerca de 10,6 milhões de habitantes do país quanto a política distributiva do auxílio emergencial em voga até janeiro desse ano. Dentre essa camada brasileira - 5% da população nacional -, temos um alarmante, contudo, não surpreendente número de 67% de negros, completado por 31,4% de brancos e 1,1% de amarelos e indígenas. Finalizando, temos dados fulcrais que demonstram não somente números, mas sim o peso da questão racial no Brasil dentro de uma pandemia mundial, assim como de um projeto de austeridade fiscal governamental majoritariamente contrário às políticas públicas que poderiam ser aliadas incipientes da mitigação do problema emergencial de renda no atual cenário catastrófico.  É inegável, portanto, o caráter organizador não somente do racismo, mas também do sexismo e da luta de classes para a questão da alocação dos principais efeitos da destruição humanitária nas costas dos trabalhadores, das minorias sociais e dos desassistidos. Mulheres negras que “chefiam” suas casas são, fundamentalmente, a personificação dos alvos da crise estrutural do capitalismo.     

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os questionamentos apresentados neste trabalho demonstram um caráter introdutório, mas direto e indicativo da problemática: pensar a crise estrutural do capitalismo em sua especificidade brasileira é, necessariamente, refletir sobre o peso do racismo na estrutura sociopolítica, cultural, de produção, ou seja, do capitalismo brasileiro. Não há, portanto, como deixar isso de lado – assim como o sexismo e a luta de classes – quando se busca compreender a realidade social brasileira num movimento da práxis transformadora. O genocídio programado e meticulosamente implementado no cenário pandêmico hodierno representa o escárnio a democracia burguesa em colapso, que respira por aparelhos enquanto buscamos remontar as suas peças quebradas. Nesse interim, o racismo atua tanto para agravar quanto para legitimar e aglutinar setores e camadas sociais, pois ao mesmo tempo que é um fator condicional para a acumulação de capital e de renda nas mãos da burguesia e da classe média alta, ou seja, para agraciar e facilitar a vida daqueles que lucram com o poder da morte, também serve para garantir o retorno inicial da questão do “salário psicológico” tão diretamente combatido pelas lutas antirracistas (ALEXANDER, 2017.p.350). Isto é, de agravar a escala de alteridade no que tange aos apontamentos dos verdadeiros atingidos pela crise, onde o branco pobre respira e valoriza a si quando desvaloriza o negro pobre e periférico, pois sua situação é melhor que a do subhumano. As narrativas do neofascismo brasileiro são evidentemente envelopadas por essa possibilidade de recrudescimento civilizacional, de destruição das bases conquistadas pelas lutas dos trabalhadores, pois a crise sendo enfrentada pelo seu agravamento requer legitimidade de ampla parcela da sociedade brasileira.

   Estamos diante, portanto, de um quadro que requer não somente o enfrentamento adequado à pandemia, mas também às questões estruturais de um sistema em definhamento que produz a morte – nos mais variados sentidos – dos trabalhadores, das minorias sociais, em suma, dos condenados da terra. É preciso, portanto, atuar de modo a destruir a raiz do problema e transformar a sociedade em que vivemos. Não podemos curar algo que invariavelmente trará novas variantes e sintomas de uma mesma questão: a lógica da sociedade da forma-mercadoria, da valorização do valor e da luta de classes perpetua as relações estruturais de opressão no seio de sua reprodução social. Esse é o ponto fundamental da relação entre crise do capitalismo, racismo e pandemia. Um potencializa o outro e, consequentemente, agravam o processo de destruição da vida minimamente digna para a zona do não-ser. Devemos compreender a natureza do ataque em que enfrenta a maioria da população brasileira, de modo a construir e garantir a viabilidade das trincheiras anti-opressões e anticapitalista, pois o afunilamento da barbárie nesse sistema putrefato não será humanizada senão pela luta dos brasileiros com vistas à práxis revolucionária e transformadora. Digamos não ao antirracismo mercadológico/liberal, que desconsidera a relação intrínseca entre a dominação de classes, a crise promovida pelo capitalismo e a manutenção da opressão racial em sua estrutura.    

Guilherme Pessoa é discente de Ciências Sociais, conselheiro de curso e militante da União da Juventude Comunista (UJC).


 Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Cássia. Fome cresce e, pela 1ª vez em 17 anos, mais da metade da população não tem garantia de comida na mesa. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/fome-cresce-pela-1-vez-em-17-anos-mais-da-metade-da-populacao-nao-tem-garantia-de-comida-na-mesa. Acesso em: 10 abr. 2021.

 ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. 1. ed. Pólen Editorial, 2019. 256 p.

 ALEXANDER, Michelle; DAVOGLIO, Pedro. A Nova Segregação: racismo e encarceramento em massa na era da neutralidade racial. São Paulo: Boitempo, 2017. 376 p.

 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. 416 p.

 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Editora Ulisseia, 1965. 270 p.

 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2008. 191 p.

 G1. Ranking de bilionários da Forbes tem 11 'estreantes' do Brasil: Ao todo, são 57 residentes no Brasil na lista de bilionários da Forbes. G1. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/04/06/ranking-de-bilionarios-da-forbes-tem-11-estreantes-do-brasil.ghtml.  Acesso em: 10 abr. 2021.

 KLEIN, Naomi. A Doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 590 p.

 MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia. Boitempo Editorial, v. 3, f. 16, 2020. 31 p.

 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. 136 p.

 MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno . Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras. Agência Pública. São Paulo, 2020. Disponível em: https://apublica.org/2021/03/brasil-registra-duas-vezes-mais-pessoas-brancas-vacinadas-que-negras/.  Acesso em: 10 abr. 2021.

 PRATES, Ian; LIMA, Márcia. Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia. Informativos Desigualdades Raciais e Covid-19, São Paulo: Cebrap, v. 7, 2021.

 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Diálogo com Fanon: o negro como não ser. In: PASSOS, Rachel Gouveia (Org.). Direitos Humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. 1. ed. Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2020, p. 258-272.

 

AGENDA

JORNAL
SINTUR-RJ

FOTOS

VÍDEOS